Após a morte do jovem forcado Fernando Quintela, praticamente duas semanas depois da morte de Pedro Primo, ambos em consequência de graves colhidas, várias têm sido as reações por parte de vários agentes da festa.
Durante o fim-de-semana, em declarações á Agência Lusa José Luís Gomes, membro da direção da Associação Nacional de Grupos de Forcados, defendia melhoria das praças de touros e ainda pediu “respeito” aos promotores que evitam pagar aos forcados. Por sua vez, já esta segunda-feira, em declarações ao Toureio.pt o presidente da Associação Portuguesa de Empresários Tauromáquicos, Paulo Pessoa de Carvalho dizia que “Infelizmente os acidentes que aconteceram, não era uma enfermaria por melhor que fosse que iria salvar uma vida”.
Neste sentido o conhecido médico-cirurgião e antigo forcado do Aposento da Moita, António Peças, coloca o dedo na ferida, deixando mesmo no ar que há médicos “médicos que colocam uma vinheta comprovando a existência das condições exigidas no Decreto-Lei n.º 89/2014”, sem que tal esteja cumprido.
Com a devida autorização, publicamos na íntegra este pertinente artigo:
“As mortes dos forcados Pedro Primo e Fernando Quintela deixaram consternados o país em geral e os aficionados em particular.
Confesso que, enquanto ex-forcado e médico cirurgião, me sinto particularmente sensibilizado e revoltado com a perda destas duas vidas.
É precisamente por esse motivo que, na véspera do funeral do Fernando Quintela, após muitas horas de reflexão, decidi escrever este texto. Não o poderia deixar ir embora sem o escrever.
Não posso calar a minha indignação por tudo aquilo que, no que à segurança dos artistas em geral e dos forcados em particular, nomeadamente às condições (in)existentes nas enfermarias da quase totalidade das nossas praças de touros, diz respeito.
Abordo este assunto porque dele tenho vasto conhecimento: fui forcado durante dez anos, participei em várias reuniões da ANGF em que este assunto foi ventilado e já por diversas ocasiões fui médico de serviço nas enfermarias de várias praças de touros fixas e nalgumas praças de touros móveis.
Recordo-me perfeitamente de ter participado em várias reuniões da ANGF, algures entre 2001 e 2005, enviado como representante do então Cabo (Hélder Queiróz) do meu grupo de forcados, o Aposento da Moita do Ribatejo.
Enquanto médico o meu único foco foram sempre a questão da segurança (as “bandarilhas à espanhola”) e as condições das enfermarias das praças de touros. Todos os participantes nessas reuniões não me deixarão mentir quando tal afirmo. E todos sabem perfeitamente qual a importância que na altura foi dada às minhas preocupações. Alguns dos então dirigentes da ANGF chegaram, em mais do que uma ocasião, a solicitar ao Hélder Queiróz que não me enviasse às reuniões, devido ao desconforto que constituía a minha abordagem repetida às questões acima referidas.
Hoje, passados mais de dez anos, pergunto: o que foi feito nesse sentido?
Tendo o Decreto-Lei n.º 89/2014, que aprova o Regulamento do Espectáculo Tauromáquico, sido aprovado no dia 11/6/2014, quem é que o cumpre no que às competências do médico e do enfermeiro diz respeito? E quem é que o cumpre no que ao material que OBRIGATORIAMENTE tem que estar disponível nas enfermarias?
Há mais de dez anos que sei do que falo e de todas as vezes que fui médico de uma enfermaria numa praça de touros fixa ou numa praça portátil não só cumpri o decretado no que ao material diz respeito como, inclusivamente, fui portador de material acrescido que penso poderá ser necessário.
Que o digam os senhores inspectores do IGAC com quem, em Maio, me cruzei à tarde em Coruche e à noite na Moita do Ribatejo.
Sou cirurgião, possuo a competência em emergência médica pela Ordem dos Médicos, sou médico de VMER e dos helicópteros de emergência médica do INEM.
Os enfermeiros que comigo trabalharam, salvo pontuais excepções, possuíam as competências exigidas no Decreto-Lei!
E sempre me fiz acompanhar pelo José Ribeiro da Cunha, ex-cabo do grupo de forcados de Coruche, tripulante de ambulâncias de emergência médica do INEM e possuidor de um grande à vontade dentro de praça. Esta situação, por muito descabida que possa parecer a alguns, é fundamental em determinadas situações, nomeadamente porque o primeiro contacto com a vítima deve ser realizado por pessoas conhecedoras das regras fundamentais da abordagem a um traumatizado.
Quem já nos viu trabalhar observou que nos dirigimos de imediato para dentro da praça, para junto da vítima, ao contrário daquilo que se verifica na grande maioria das situações, ou seja, a equipa médica a aguardar pelas vítimas dentro da trincheira ou na enfermaria. Os médicos sabem que, nas situações graves, todos os segundos contam!
Posto isto, quando leio as afirmações dos senhores José Luís Gomes e Paulo Pessoa de Carvalho não posso deixar de ficar incrédulo!
Não têm conhecimento do referido Decreto-Lei???
O Sr. José Luís Gomes foi cabo do grupo de forcados amadores de Lisboa durante muitíssimos anos, é pai do actual cabo (que, por sinal, já sofreu uma lesão gravíssima enquanto pegava), é dirigente da ANGF e afirmou, passo a citar, “as enfermarias [praças de toiros] têm que estar devidamente apetrechadas com suportes, mesmo à porta, para este tipo de casos (colhidas). Era importante ter logo ali um veículo que estabilizasse o forcado”?? Dedo na ferida…?!? O que era importante era fazer cumprir o Decreto-Lei!!! Lá está pasmado tudo aquilo que uma enfermaria tem, OBRIGATORIAMENTE, que possuír! E não se cumpre porquê? E o que fez a ANGF para que seja cumprido? Ou o que fez o Sr. José Luís Gomes para que seja cumprido nas praças onde organizou corridas de touros? Ou, porque em Cuba nenhum dos grupos era associado, o que aconteceu não é da incumbência da ANGF? Continuem-se a discutir os vetos, que é assunto muito mais importante…!
Quanto ao Sr. Paulo Pessoa de Carvalho, que não é médico, com que conhecimento afirma que “infelizmente os acidentes que aconteceram, não era uma enfermaria por melhor que fosse que iria salvar uma vida. Lamentável estas mortes que a todos nos marcaram, mas quis o destino que as colhidas tivessem tido consequências para as quais a medicina e a capacidade de intervenção humana, não está preparada para uma resposta como gostaríamos”?? Pergunto: quanto tempo demorou o oxigénio a chegar à enfermaria? E o aspirador de secreções? E quanto tempo demorou a chegar o apoio diferenciado (VMER de Almada) à praça de touros da Moita?? Vai-se exigir a presença de uma VMER em cada praça de touros porque o Regulamento não é cumprido? Ou vamos continuar a deixar que o “destino” se encarregue de exercer a sua função??
E como explica que, perante a questão “será que se descurou a segurança dos intervenientes num espetáculo tauromáquico?” tenha podido responder “não acho de forma alguma que isso tenha acontecido, posso mesmo dizer que aconteceu o contrário, a segurança cada vez mais está e esteve neste caso, na ordem do dia. Evoluiu-se muito mesmo, mas não podemos esquecer que esta é uma atividade de enorme risco e por mais que a prevenção seja boa, os acidentes graves acontecem infelizmente”? Evoluiu-se?? Nas enfermarias e na exigência das competências das equipas médicas?? A sério?? E o que fez a Associação Portuguesa de Empresários Tauromáquicos, da qual o Sr. Paulo Pessoa de Carvalho é presidente, para que as medidas obrigatórias fossem implementadas??
Contam-se pelos dedos de uma mão os empresários que se disponibilizaram a contratar os nossos serviços! 300 ou 400€ são uma exorbitância! Mas depois diz-se que uma vida não tem preço…
Não parecerá estranho que tenham morrido mais forcados em Portugal do que matadores de touros em Espanha nos últimos anos?? Principalmente sabendo todos nós da gravidade de muitas das colhidas sofridas pelos matadores de touros naquele país?! Será obra do “destino”, garantidamente…!
Parece-me curioso que, segundo parece, estando em curso uma queixa à Ordem dos Médicos sobre a colega que fez afirmações completamente lamentáveis sobre a morte do Pedro Primo (e eu não poderia estar mais de acordo com a referida iniciativa!) ninguém ainda tenha adoptado semelhante conduta relativamente aos médicos que colocam uma vinheta comprovando a existência das condições exigidas no Decreto-Lei n.º 89/2014!! Parece-me gravíssimo que tal suceda! E penso que, mais cedo ou mais tarde, a Ordem dos Médicos, o Ministério da Saúde ou o IGAC terão que tomar medidas objectivas sobre este escândalo.
Estou consternado, repito, com a morte do Pedro e do Fernando.
Mas mais ainda com o “sacudir a água do capote” que se constata por parte de quem tantas responsabilidades deveria ter, com a inoperância das entidades responsáveis por fazer cumprir o Regulamento e, pelo andar da carruagem, com a certeza de que, se o “destino” assim o entender, mais Pitós, Primos e Quintelas continuarão a ir-se embora sem que nada de concreto seja feito para o tentar evitar…
É esta a forma como se trata um dos espectáculos culturais que mais público arrasta e que mais receitas gera ao país!
Pobrezinha tauromaquia a nossa!!”
O Toureio.pt dá-lhe a conhecer o Decreto-Lei n.º 89/2014 – Artigo 15º:
“Artigo 15.º
Posto de socorros e assistência médica
1 – Em todas as praças de toiros é obrigatória a existência de um posto de socorros, fixo ou móvel, para assistência aos artistas tauromáquicos.
2 – O posto fixo de socorros deve considerar:
a) Duas divisões contíguas e comunicáveis entre si, com uma dimensão mínima de quatro por quatro metros cada;
b) Pavimento e paredes revestidas por material próprio, lavável e impermeável;
c) Lavatório com água corrente.
3 – Numa das divisões destinada a primeiros socorros deve existir um mínimo de duas macas, uma marquesa e mesa para estabilização e prestação de primeiros tratamentos de urgência ou emergência, designadamente intervenções de pequenas cirurgias, para o que deve dispor de iluminação adequada.
4 – A equipa médica e o posto de socorros devem possuir, respetivamente, as competências e o equipamento constante das tabelas constantes do anexo ao presente regulamento, do qual faz parte integrante, que garantem uma capacidade de resposta e estabilização inicial mínima adequada a uma situação de urgência ou emergência, e ainda material de proteção individual, designadamente, batas, aventais plásticos, óculos e luvas.
5 – O material indicado no número anterior deve estar esterilizado e pode ser fornecido por instituição de saúde.
6 – Em todos os espetáculos, o promotor assegura a presença de uma ambulância de emergência do tipo B e de uma equipa de reanimação constituída por um médico, preferencialmente da área de traumatologia ou ortopedia, e um enfermeiro, ambos com formação e experiência em Suporte Avançado de Vida no Trauma.
7 – Compete à equipa médica verificar se o posto de socorros respeita as condições estabelecidas no presente artigo, bem como a presença de uma ambulância de emergência tipo B, e entregar o seu parecer ao diretor de corrida, por escrito, até uma hora e 30 minutos antes do início do espetáculo.
8 – Compete ainda à equipa médica o entregar ao diretor de corrida, após o espetáculo, um documento de registo das ocorrências verificadas.
9 – O promotor do espetáculo comunica ao mais próximo hospital com serviço de urgência polivalente ou médico-cirúrgica, bem como à delegação regional do Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P., com a antecedência mínima de cinco dias úteis, o dia da realização do espetáculo.
10 – O promotor entrega à equipa médica e ao diretor de corrida, até à hora do sorteio das reses, um documento comprovativo da comunicação referida no número anterior.